Por Fábio Grellet
Rio, 15/04/2021 - A Human Rights Watch envia nesta sexta, 16, uma carta ao procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro, Luciano Mattos, recomendando que restaure o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp). Trata-se de um grupo de promotores especializados na prevenção, investigação e responsabilização de abusos policiais, extinto em março. Outra hipótese seria constituir nova equipe na Procuradoria, com a mesma função.
Mattos assumiu o cargo de procurador-geral de Justiça em janeiro. Extinguiu esse e outros grupos em março. Para a HRW, uma organização internacional de defesa de direitos humanos, a extinção enfraqueceu consideravelmente o controle externo da polícia pelo Ministério Público. A entidade afirma que o Gaesp deu contribuições importantes à prevenção e responsabilização por abusos policiais no Rio desde sua criação, em dezembro de 2015.
“Mortes causadas pela polícia e outros abusos continuam sendo um problema enorme no Rio de Janeiro, em grande parte devido a uma impunidade generalizada”, diz Maria Laura Canineu, diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch. “O procurador-geral de Justiça só piorou a situação, ao eliminar a unidade de promotores encarregada de buscar a responsabilização nesses casos. Ele deveria reverter essa decisão”.
Civis abatidos por policiais foram recordes no Rio
As mortes decorrentes de ações policiais atingiram recordes no Estado do Rio. Em junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu operações policiais em comunidades durante a pandemia de covid-19. As exceções são “hipóteses absolutamente excepcionais”. Ainda assim, a Polícia do Rio matou mais de 1.200 pessoas em 2020. Isso é mais do que todos os mortos a tiros pelas polícias nos Estados Unidos, no mesmo período.
Nesta sexta-feira (16) e na próxima segunda-feira (19), o Supremo Tribunal Federal (STF) vai realizar audiências públicas para discutir estratégias de redução da letalidade policial no Rio. As iniciativas são parte de uma ação que pede ao tribunal que determine ao Estado do Rio a elaboração de um plano com esse objetivo. Para o sucesso de qualquer plano para reduzir a letalidade policial, diz a HRW , é crucial o compromisso do procurador-geral de Justiça de defender vigorosamente a lei em casos que envolvam atividades criminosas praticadas por policiais.
Em uma decisão liminar de 2020, o ministro do STF Edson Fachin concluiu que as autoridades do Rio não conseguiram conter a letalidade policial no Estado. Depois, afirmou que a Constituição Federal atribui ao Ministério Público (MP) o papel de garantir a responsabilização nos casos de abusos policiais.
A decisão observou que os Princípios Básicos das Nações Unidas sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei exigem uma “instituição independente” como o MP para cumprir esta missão. Fachin determinou que o MP do Rio conduzisse suas próprias investigações em casos de suspeita de conduta policial criminosa, em vez de depender de investigações da própria polícia.
Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou, em sentença sobre um caso ocorrido na favela Nova Brasília, no Rio, que o Brasil assegure que abusos policiais sejam investigados por “órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público”. A extinção do Gaesp pelo procurador-geral torna o cumprimento da missão do MP muito mais difícil, afirma a HRW.
Grupo investigava mais de 700 casos de abuso policial
Quando extinto, o Gaesp tinha sob sua responsabilidade mais de 700 investigações de abusos policiais. Havia apresentado 24 denúncias em casos de homicídios cometidos por policiais desde 2019. O grupo também abriu inquéritos civis sobre práticas policiais que violam direitos básicos. O objetivo era forçar a adoção e cumprimento de protocolos para coibir tais abusos.
Em março, o Mattos anunciou que, devido à eliminação do Gaesp, todos os casos de abuso policial seriam tratados exclusivamente pelos seus “promotores naturais”. A HRW alerta que esses promotores podem ter de investigar abusos cometidos pelos mesmos policiais com quem interagem ou trabalham em outros casos sob a mesma jurisdição. Eles podem, justificadamente, temer riscos de retaliação ao assinar sozinhos uma denúncia contra esses agente, afirma a entidade.
Além disso, podem apresentar dificuldade em lidar com casos de abuso policial, muitas vezes complexos, em meio ao grande volume de processos em que devem atuar. Os promotores naturais podem também optar por não realizar suas próprias investigações sobre abusos policiais. Em vez disso, confiariam apenas nas conclusões da Polícia Civil.
Para a HRW, isso poderia comprometer a imparcialidade das investigações. A Polícia Civil estaria investigando seus próprios membros ou policiais militares com quem podem ter trabalhado em outros casos.
O procurador-geral também anunciou a criação da Coordenadoria-Geral de Segurança Pública. A missão do novo órgão será coordenar os trabalhos do MP nessa matéria. Mas essa coordenadoria não terá autoridade para investigar e oferecer denúncias em casos individuais de abuso policial nem para abrir inquéritos civis e outras ações envolvendo protocolos e práticas policiais, aponta a HRW.
Embora algumas mortes por policiais ocorram em legítima defesa, outras são resultado do uso excessivo e imprudente da força, conforme documentado pela HRW. Os abusos da polícia, incluindo execuções extrajudiciais, fazem moradores das favelas temerem os policiais., em vez de confiar neles. Isso contribui para um ciclo de violência que coloca em risco a vida de civis e dos próprios policiais, avalia a entidade.
“O enfraquecimento dos mecanismos de responsabilização por abusos policiais beneficia apenas os policiais que infringem a lei”, disse Maria Laura Canineu. “Policiais abusivos e violentos não só causam grande sofrimento a centenas de famílias do Rio todos os anos, mas também comprometem a segurança pública e tornam o trabalho de policiamento ainda mais difícil e perigoso para o restante da força policial”.